segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Diferenças entre "Budô" e esporte.

Entrevista com Motonobu Hironishi'Sensei (discípulo de O'Sensei)
(Texto resumido, extraído do boletim Shotokai)
Sensei, onde e quando o Senhor nasceu?
Nasci em 01 de janeiro de 1913 na cidade de Kyoto

Quando o senhor começou a praticar Karatê-Dô?
Comecei a praticar Karatê-Dô em 1931 com a idade de 19 anos, na Universidade de Waseda.

Quem foram os seus companheiros?
Foram Egami e Noguchi. Como professor O-Sensei'Gichin Funakoshi e como assistente foi Takeshi Shimoda'Sensei e, mais tarde, o filho de O’Sensei, Yoshitaka. Também nesse tempo, eu me recordo que na Universidade Takushoku, Nakayama, com o qual também estávamos algumas vezes.
Como surgiu a amizade entre você e o Sr. Egami?
Eu não posso dizer como, mas desde o primeiro momento apareceu um relacionamento espontânea, uma espécie de unidade que se estendeu incluindo até aspectos da vida cotidiana. Isto pode ter sido motivado pela diferença de caráter e constituição. O Sr. Egami era talvez mais agitado e eu possivelmente mais tranqüilo.
Sabemos senhor Hironishi, que em sua juventude, obteve um 1 º prêmio no concurso organizado pelo jornal Asahi.
Sim, naqueles momentos na juventude, tinha uma constituição muito forte, de modo que, após inúmeros exames, sob o conceito dos médicos da época, então, me elegeram como o biótipo físico de constituição ideal.
Você poderia nos contar sobre Karatê-Dô e suas origens e evolução subseqüente?
Antes de ser difundido era uma arte pouco praticada. Naquela época o Japão passava por um tempo de nacionalismo elevado, de modo que o Karatê-Dô que veio de Okinawa foi pouco considerado em relação ao Judo e o Kendo, que eram tradicionalmente mais conhecidos. Depois de estudar e pesquisar muitos livros, viajar para o exterior, percebemos que em toda a extensão do mundo islâmico e budista, existia uma arte de características similares ao Karatê-Dô, que pretende a busca da verdade por meio da prática através do corpo. Esta arte e a religião mantiveram uma estreita simbiose. Além disso, no período primitivo com o confronto entre diferentes tribos, surgiram diferentes formas de luta que com o tempo foram se especializando, até chegar o momento da sua introdução no Japão. Sua evolução posterior iniciou-se com O-Sensei'Gichin Funakoshi e seu filho Yoshitaka, juntamente com seus alunos mais destacados.
Como era O-Sensei'Funakoshi e seu filho Yoshitaka?
O-Sensei'Funakoshi era de menor estatura, comparado com a altura média. Possuía um caráter afável e sereno, com um humor muito constante. Era uma pessoa muito calada, tranqüila, que gostava de escrever poesias e fazer caligrafia. Sua aparência e seu porte eram de um intelectual. Tecnicamente possuía um Tsuki muito forte e seus bloqueios eram muito firmes, que comprovávamos dolorosamente quando o atacávamos. Yoshitaka era o terceiro de seus filhos. Seu caráter era muito forte, e tecnicamente era muito ortodoxo, com um Karatê-Dô muito ofensivo.
Que relações existiam entre os professores: Funakoshi'O-Sensei, Mabuni'Sensei e Miagi'Sensei?
Antigamente, na parte leste do Japão com o centro em Tóquio, se praticava o Karatê-Dô de O-Sensei'Funakoshi. Na parte oeste com centro em Osaka, era praticado o estilo de Mabuni'Sensei. Como esse mestre tinha uma idade inferior a O-Sensei'Funakoshi, senti um profundo respeito por ele. Miagi'Sensei centralizava a sua influência em Okinawa.
Antigamente, antes da Segunda Guerra Mundial, a cada ano tinha uma demonstração de artes marciais frente ao Imperador. O-Sensei'Funakoshi foi o único que teve a honra de fazer essa demonstração não uma, mas duas vezes, onde o Karatê-Dô ganhou em importância e prestígio.
Gostaríamos de saber como começou a competição?
Para difundir o Karatê-Dô se estudou um tipo de Kumite livre que só se realizava nas demonstrações. Com a passar do tempo este tipo de kumite começou a ter outro caráter, que se desviava do caráter do espírito Budô. Em 1940, O-Sensei'Funakoshi o “ proibiu “ e em 1941 ratificou esta proibição, advertindo aos estudantes, que eles seriam expulsos caso participassem de campeonatos!!
Entre companheiros de classe e como método de estudo, era permitido, porem jámais foi permitido com o objetivo de ganhar campeonatos. De qualquer modo, esse tipo de kumite era muito mais difícil e mais duro do que aquilo que é praticado em competição hoje em dia.

O que é Shotokan-Shotokai?
Shotokai é uma associação fundada por O-Sensei'Funakoshi e reúne os alunos que praticam seu método. Antes da Segunda Guerra Mundial, esta associação teve 90% dos praticantes de Karatê-Dô. Hoje é a única associação que conta com a permissão da família de O-Sensei'Funakoshi para usar o nome Shotokan.
Gostaríamos de conhecer os motivos das separações dentro da escola?
O principal motivo foi o desejo de alguns professores em desenvolver dentro do Karatê-Dô a idéia de esporte.
Por causa da confusão durante e depois da guerra, surgiram novos estilos influenciados pela imagem de mudança e modernização que eclodiu no país. Eram modalidades que atraiam a juventude pelo caráter desportivo de natureza competitiva tão em voga naquelas circunstâncias.
O senhor poderia explicar o seu conceito de Kime?
Para que uma técnica tenha Kime, esta deve transmitir a energia adiante. Se em uma técnica se utiliza a contração muscular, o movimento se detêm, por isso não a consideramos Kime.
Buscamos o desenvolvimento da força interior e não unicamente a exterior. Por efeito ótico esta energia não se vê. Seria mais fácil utilizar as técnicas com contração muscular, porem assim se corta o fluxo da energia.
O-Sensei'Funakoshi dizia que no Karatê-Dô deve existir um equilíbrio entre tensão e relaxamento, porem atualmente existem estilos que só buscam a tensão.
Normalmente se pensa que quando se chega no contato o golpe terminou, porem na verdade é nesse momento que ele começa.
Usa-se o movimento completo do corpo, começando com a projeção dos quadris. Para entender isso completamente, muitos anos são necessários.

Quais são para o senhor as diferenças entre Budô e esporte?
O significado do Kanji Bu, é "parar a lança." Isto tem um sentido de buscar a ( NÃO oposição ), daí a insistência de O-Sensei'Funakoshi em passar de Jutsu para “Dô”, para ser natural, não ir contra a natureza, mas adequar-se as suas leis, em prol da evolução humana.
No Budô tecnicamente se muda o "ataque" pelo " não ataque".
No esporte se ensina para obter a vitória. No Budô é ensinado o conceito de "perder" o qual não significa, deixar-se vencer, esta questão constitui uma forma de aprender a ir além, de transcender, da vitória ou da derrota, superando o egoísmo, única maneira de ser "um "com o oponente.
No Japão, existe uma expressão que diz que "perder é ganhar". No Budô, quando se recebe um golpe se deve agradecer, pois isto leva consigo um ensinamento.
Para uma competição deve-se ter regulamentos e proibir muitos ataques perigosos, determinam-se regras num espaço determinado. Porem numa guerra real não existem regulamentos; atacam por todos os lados.
Numa competição existem muitos regulamentos, mas note que na luta real é muito mais importante e prático o que é proibido no dito regulamento.
Na competição só se presta atenção para a frente, para um oponente apenas. Se pensa que cuidar da retaguarda é perda de tempo. No boxe se luta em uma posição bastante alta, porque é proibido bater nas partes baixas. Na competição, como no boxe os golpes perigosos são proibidos, na confiança de que nada pode acontecer.
No Budô, onde o conceito é integral, a guarda sempre muda.
Olhando para o judô esportivo, vemos que a luta começa com o agarramento, sem pensar sobre a possibilidade de um ataque anterior, então não há nenhum estudo do ma-ai (distância).
No Kendo, antigamente se trabalhava em Kokutsu-dachi (posição para trás). Atualmente, e devido às regras desportivas, a guarda ficou mais alta e já não se ataca a nível gedan (baixo).
Antes se golpeava obliquamente a partir do pescoço, com a intenção de atravessar o corpo. Atualmente, só se ataca na cabeça, usando golpes secos e sem atuação desde o quadril.
No caso do tsuki (soco), se buscava golpear e penetrar em muitas áreas vitais do corpo. Devido à dificuldade em proteger as pernas se estudava muito os ataques nas articulações. Atualmente, estas técnicas são proibidas justamente por esta incapacidade de serem protegidas.
Em qualquer esporte, só é cobrado do árbitro que se cumpra o regulamento, sem ter o poder de decidir o vencedor, o que não ocorre na competição, onde o árbitro pode decidir quem ganha.
Pode-se ver que existe muita diferença entre o combate real e a competição, e isso se traduz no kamae (não apenas na guarda física, sem a atitude).
Kamae se expressa de uma forma que denota o estado de espírito e na atitude (nível de ki), e embora os golpes numa competição possam doer, sua finalidade não é livrar-se do adversário. Na realidade, considerando a competição em termos de combate real, o melhor é receber o golpe para em seguida golpear com a idéia de atravessar. E nestas circunstâncias, não tenha medo, deixe-se golpear e entre com decisão.
Da competição para a forma real tudo muda!
O que é o Karatê-Dô para você?
Com o passar dos anos cada vez eu gosto mais do Karatê-Dô. A medida que aumenta minha idade compreendo as coisas com mais profundidade.
Quando iniciei, queria ser forte para lutar. Depois compreendi que não precisa muita técnica para lutar.
A maioria dos jovens querem ser fortes e lutar, porem os instrutores devem educá-los e orientá-los adequadamente. Com o tempo e a prática, irão compreender o correto.

Quem foram seus discípulos?
Posso dizer com certo orgulho, que a maioria dos grandes mestres atuais em algum momento ou outro, praticaram comigo.
Que conselho você daria?
Gostaria de salientar, na prática (keiko) Karatê-Dô que o objetivo final deve ser o de obter o espírito do Budô da não-resistência, o espírito sem proveito próprio, sem o ego, (mushotoku), procurar a unidade, a unidade ...
Temos de encontrar a mesma relação que existe entre mãe e filho, mesmo quando a criança magoa a mãe, ela não o odeia por isso.
Entre os homens, quando um golpe não fere, não existe raiva, quando fere, se desperta a raiva. Observar o comportamento de homens mais velhos com os netos, que são mais amigáveis e tolerantes por causa de sua maturidade e maior capacidade de compreensão.
Portanto, numa luta deve-se atingir o mesmo estado de espírito, fixo e imutável, seja com dor ou sem dor.
Não existem ofensas, e sim uma grande compreensão e entendimento.
É essencial o bom relacionamento, a amizade, conviver bem e progredir.
Conforme se progride tecnicamente o entendimento muda.
É fundamental o estudo e o trabalho do kata.
Os homens têm manias, apegos, vícios, e quanto mais se trabalha e se progride no kata, mais se perdem estas manias e os maus hábitos.