segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Espírito, mente e corpo!

O uso da força na execução das técnicas.
"
Hoje foi um dia especial.
Como muitas vezes acontece, às vezes só percebemos que algo foi especial, ou o quanto foi especial, um pouco depois do ocorrido. E, claro, a nossa percepção é muito particular, pois o que pode nos parecer especial pode ser algo perfeitamente trivial para outras pessoas.
Eu só me dei conta de uma lição importante já no final do dia, quando passeava com a Linda, minha cachorrinha, no parque que fica próximo ao meu prédio.
O que vou falar aqui não tem nada de novo. Certamente o conceito não foi criado por mim e outros praticantes já ouviram falar sobre o que vou falar a seguir por outras fontes, orais ou escritas, muito mais autorizadas. Ou ainda, mais adiantados do que eu, já tiveram essa mesma percepção.
O fato é que hoje, uma convergência de fatos fez com que algo que, para mim era apenas um conceito puramente abstrato tomasse uma forma mais palpável, uma forma gráfica, por assim dizer.
Na verdade, muita coisa concorreu para isso e, para compartilhar o sabor da minha experiência, precisarei voltar um pouco atrás...
Hoje é meu último dia de férias. Nessas férias, aproveitei muito do meu tempo livre para treinar Karatê. O último semestre foi uma fase tumultuada para mim por vários motivos e eu pratiquei muito pouco Karatê, durante o ano que passou. Mas, nessas férias, houve um incentivo a mais, pois, na semana que vem, receberemos a visita de Oshiro Shihan, mestre do meu mestre. Obviamente uma visita assim demanda uma preparação adequada e então, no último mês, treinei Karatê como quando era garoto.
Os treinos com esse mestre costumam ser particularmente exaustivos e muito longos e assim, eu meus colegas treinamos com afinco. Nesse período final, um dos faixas-pretas acabou agravando uma antiga lesão no joelho e acabou tendo que fazer uma cirurgia.
Eu também não escapei ileso. Durante os treinos muito intensos uma antiga contusão, da época em que eu praticava atletismo, começou a incomodar. Meu tendão-de-aquiles começou a doer muito e, definitivamente, me vi forçado a diminuir o ritmo e cortar as corridas e outros treinamentos de arrancada e explosão.
Ora, mas como me preparar para a visita do mestre adequadamente se teria que abandonar os exercícios aeróbicos (correr, pular corda, etc.) e, ao mesmo tempo, devido à dificuldade em “arrancar” para frente, eliminar quase completamente a maioria das técnicas de ataque, ficando limitado apenas à defesa?
Como eu precisava de fôlego e, ao mesmo tempo, apresentar uma execução técnica de alto nível, resolvi programar o meu treinamento para executar sessões longas dos tradicionais katas do estilo. Passei a me dedicar a treinar todas as manhãs, todos os katas que praticamos, repetindo várias vezes cada um deles. Fui aumentando o número de repetições de cada um e, combinando isso com a mudança de direção de execução, cheguei a treinos de aproximadamente 3 horas seguidas.
Eu procurei praticar eliminando ao máximo uso de contração muscular na execução das técnicas. O meu objetivo, a princípio, não tinha nada de especial, profundo ou filosófico. Tentei eliminar a força porque não podia fazer força. Me ocorreu que, mantendo todas as outras variáveis, especialmente velocidade, fluidez e correção técnica poderia tornar o treino mais aeróbico possível e, com isso, já que estava limitado no quesito de explosão muscular, ao menos ganhar fôlego o suficiente para me apresentar diante do mestre.
Ora, durante os treinos comecei a perceber uma mudança interessante. Quando executava o kata na forma padrão, dosando força e velocidade e com a atitude mental correta, a sensação ao final da execução era o equivalente à de uma vitória suada depois de uma luta contra um adversário especialmente difícil.
Quando modifiquei maneira de executar, eliminando a força contrativa e a explosão ao mínimo necessário, dando mais ênfase ao ritmo, fluidez e precisão, passei a experimentar, ao final da execução, uma sensação de ordem completamente diversa da anterior. Obviamente que o cansaço ainda existia, mas a sensação agora era contentamento. Algo semelhante à sensação imaterial de satisfação ao caminhar por uma bela paisagem, despreocupado, apenas apreciando o sol, o vento no rosto e a vista.
Claro que isso não ocorreu de uma vez. A princípio nem me dei conta. Mas, à medida que os dias foram passando e as repetições se acumulando, a diferença nas sensações ficou progressivamente mais pungente. Mas o fato é que até poucas horas atrás não tinha avaliado tão bem a magnitude da diferença. Eu precisava, talvez, de um catalisador para que isso fizesse sentido dentro de um quadro maior.
O catalisador acabou vindo de onde eu não esperava. No sábado pela manhã tive uma grata surpresa. Meu sensei de Aikidô, que há muito tempo não participava ativamente da aula, por estar se recuperando de uma extensa e delicada cirurgia (na verdade duas cirurgias), chegou ao Dojô enquanto nos aquecíamos, se trocou e, quando dei por mim, estava entrando no tatame e assumindo o comando da aula.
O fato em si já seria sobremaneira alegre. Mas, a verdade é que foi uma aula excepcional. Nada de movimentos complexos ou avançados. Apenas técnicas básicas, os fundamentos, mas tudo executado com uma maestria da qual, confesso, já estávamos desacostumados.
Superficialmente, eu poderia analisar/justificar a diferença na qualidade de execução simplesmente considerando o fato de que ele, se tem o dobro da minha idade, também já treina há quatro vezes mais tempo que eu (para se ter uma idéia, ele chegou à faixa-preta de Aikidô um ano antes de eu nascer e, antes disso, já era faixa-preta em Judô).
O fato é que há uma diferença mais fundamental, que é, eu acho, ao mesmo tempo uma causa e efeito do fato de ele ser mais velho, treinar por tantos anos a mais que nós e, não estar “em forma”, já que está se recuperando ainda. O mesmo movimento executado por ele é mais espontâneo e natural que o nosso na mesma medida em que ele simplesmente os executa muito mais RELAXADAMENTE que nós.
É só isso, relaxamento !
Trivial isso, não? Na verdade ele vem me dizendo isso de uma forma ou de outra desde que comecei a treinar. Todo mundo que já leu textos do fundador ou de algum de seus alunos mais próximos já ouviu isso, não é mesmo?
Eu também já tinha entendido isso intelectualmente, como uma abstração. Mas, dessa vez eu consegui “ver” e “sentir” o conceito. A combinação do tipo de treinamento de Karatê a que me submeti no último mês e da aula do sensei de Aikidô me “abriram os olhos” mais do que mil palavras.
A conclusão, me parece, independe de estarmos falando de Karatê ou Aikidô. É algo mais profundo e que exige percepção em primeira mão para se captar a essência.
Tecnicamente, formalmente, o que eu faço e o que o sensei faz é praticamente igual. Só que ele executa isso relaxadamente e isso, meus amigos, faz toda a diferença do mundo!
Eu sei disso em primeira mão porque eu fui o atacante. Comecei devagar, dosando. Mas à medida que percebi que ele estava se movendo sem problemas, comecei a complicar mais os ataques, aumentando velocidade e intensidade. No fim estava atacando forte. Sei que do jeito que eu estava atacando, eu ou qualquer dos meus colegas teríamos dificuldade em nos defender e, principalmente em nos livrar das pegadas.
Já com ele, agora percebo claramente, quanto mais forte e rápido eu atacava, mais relaxada e naturalmente ele se movia. Quanto mais eu apertava, mais ele relaxava.
Assim, agora há pouco me dei conta do seguinte: se o objetivo final do treinamento é o de unificar mente e corpo, de modo que ajam em uníssono, a chave está justamente nesse pequeno e precioso detalhe: no RELAXAMENTO.
Eu acabei esboçando um modelo que me esclareceu a abrangência do conceito. Sei que isso parece complicação demais para algo tão “simples”, mas é assim que funciona a cabeça dos físicos...
Pense na sua mente como algo que está dentro do seu corpo. A sua mente, o seu ego, é algo que, confinado dentro de um invólucro físico, o controla e o comanda.
Se sua mente ordena ao corpo que ande, ele se move. Se a ordem é para executar uma técnica qualquer, o corpo vai executar com maior ou menor grau de acurácia dependendo de o quanto ele está “em forma” para executar e do grau de controle da mente sobre ele.
No entanto, o próprio conceito de uma mente que comanda um corpo envolve um grau de dualidade que representa, ao mesmo tempo, uma limitação. Ora, quanto mais o corpo estiver maleável e treinado, com mais facilidade os comandos da mente conseguem percorrê-lo e comandá-lo.
Porque o corpo, ao mesmo tempo em que é o executor da ordem, é também a via por onde caminham os sinais correspondentes aos comandos. Não se pode separar os membros e músculos que executam a ação do caminho que a informação percorre para chegar até eles. A contração muscular excessiva simplesmente estreita os canais ou aumenta a resistência e faz com que a informação não possa trafegar livremente ou se dissipe no caminho. Em uma máquina elétrica diríamos que a contração aumenta a impedância e, assim, desperdiça energia, tornando-a menos eficiente.
Sendo assim, cheguei à conclusão de que há uma chave que faz a grande diferença na QUALIDADE dessa execução.
Essa chave é o relaxamento. Isso vale para as técnicas do Aikidô ou para as de Karatê e, suponho, de qualquer outra arte que possamos pensar como a dança ou a música.
Senão, vejamos: se a minha mente ordena ao meu corpo que ande, para que isso aconteça, é claro que algum grau de força deve ser utilizado. Para eu me mova, um delicado balanço entre músculos que se contraem e relaxam deve ser executado para que as resistências naturais ao movimento sejam vencidas. Eu preciso vencer a gravidade para me erguer da cadeira e me manter ereto, ao mesmo tempo em que preciso empurrar o chão para trás para que eu possa me mover para frente.
Assim, para me mover, eu preciso fazer força. Só que, agora eu percebo, há uma diferença clara entre eu fazer força na JUSTA MEDIDA para vencer as resistências e mover meus membros no ritmo correto e eu acrescentar mais contrações musculares do que as necessárias que só vão impedir e dificultar o movimento natural. Querer bater os pés com mais ou menos força no chão, querer andar pisando só com as pontas ou com os calcanhares vai produzir um resultado grotesco e pouco natural
A contração além dessa justa medida serve apenas para acentuar/forçar uma separação artificial entre corpo e mente. Ela impede que a mente e o corpo ajam como se fossem um só criando uma dicotomia completamente artificial.
Reconsideremos a idéia da mente confinada no corpo, pensemos nela de modo gráfico e literal. Se o corpo é algo que limita a mente, contendo-a, esse invólucro pode ser um lar ou uma prisão. quanto mais relaxado o corpo estiver mais a mente terá liberdade, na medida em que suas ordens serão executadas sem impedimento.
Por outro lado, quanto mais contração, maior a sensação de aprisionamento da mente, que se verá dentro de uma cela cada vez mais apertada à medida que o corpo se contrai.
É como se a contração aumentasse a densidade das paredes e o seu peso. Ao se relaxar, as paredes vão ficando menos densas e mais leves e, ao se conseguir um bom nível de relaxamento, a prisão converte-se, por assim dizer, em um veículo para a mente
Ora, mas é a mente que comanda o movimento e assim, é ela que comanda o relaxamento também. Isso quer dizer, em última análise, que a mente cria a própria prisão, pois na medida em que, pelo seu próprio comando, estreita os limites do movimento, reduz a própria liberdade.
Uma mente será tanto mais livre quanto mais relaxado o corpo estiver.
O relaxamento não quer dizer a ausência de força ou contração muscular, mas sim a realização do movimento usando a força apenas na justa medida para que o movimento se realize.
O movimento realizado na justa medida, sem força excessiva, é leve.
Um corpo que se move com leveza é um fardo menos pesado para a mente carregar.
Qualquer coisa que acrescentemos de força além do necessário, como fazemos quando desejamos vencer ou nos impor ao adversário, quando queremos fazer mais rápido, etc. só serve para impedir que possamos realizar justamente aquilo que queremos fazer.
Do ponto de vista da mente, a contração excessiva a acorrenta e limita as suas possibilidades, enquanto que o relaxamento é liberador e permite a realização do seu potencial.
A atividade da mente ao executar a técnica deve se reduzir ao mínimo necessário para manter o estado de alerta e comandar o relaxamento. Quando contaminamos a execução com o desejo de vencer, de parecer forte, de fazer mais rápido, esse mesmo desejo de algo mais, essa ingerência do ego, essa vontade de fazer mais certo que o certo faz com que ocorra a contração e a limitação.
Quando ocorrem o relaxamento e a justa medida na aplicação da força, a mente e o corpo trabalham como um só. A mente não sobrecarrega e nem tensiona o corpo e o corpo, por sua vez, não aprisiona e nem limita a mente.
Assim, a nossa mente pode criar uma prisão para si mesma ou pode simplesmente deixar o movimento acontecer.
Seguindo esse modelo, se o relaxamento permite a gradual fusão entre o corpo e a mente, para que, no limite, eles trabalhem como um só, então, nesse limite, onde o corpo se torne tão pouco denso pela eliminação da contração inútil que a mente passe a agir com total liberdade, acho que podemos supor que a técnica talvez deixe de ser técnica e reste apenas a espontaneidade...
Fácil não? Basta relaxar e se mover naturalmente!
Entretanto, o relaxamento, mais do que qualquer técnica ou forma, é, com certeza, o que há de mais difícil...
O processo de conseguir relaxar cada vez mais confunde-se com o processo do treinamento. Espera-se que, à medida que você pratica cada vez mais, por anos a fio, progressivamente a técnica se torne uma segunda natureza e o movimento se torne espontâneo. Esse processo de ocorre em paralelo, se o treino for corretamente orientado, com o progressivo relaxamento.
O relaxamento completo, que permite a fusão e a unidade mente-corpo talvez seja uma meta inalcançável. Um ideal...
Ideais, como a perfeição, são, me parece, mais uma meta inspiradora, da qual podemos trabalhar para nos aproximar cada vez mais, do que coisas ou estados realmente atingíveis.
Entretanto, isso não deve nos afligir ou intimidar. Afinal, o trabalho para se atingir um ideal, aproximar-se cada vez mais da meta, mesmo sem nunca atingi-la, é, num certo sentido, o próprio CAMINHO. "
Anderson Gomes de Oliveira
Em Brasília, 08 de fevereiro de 2009.