sexta-feira, 20 de março de 2009


Karatê-Dô Kyohan “ The master text ” 1935


Uma definição do Shotokan Ortodoxo de “ O-Sensei ”

“ O texto a seguir é um resumo do original ”.

Arte Marcial japonesa, o Karatê-Dô propagou-se por todo o mundo, chegando ao Brasil através das imigrações japonesas, realizadas no começo do século passado, difundindo-se em todos os estados brasileiros e, possuindo hoje no Brasil, 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) “praticantes” aproximadamente, divididos por diferentes estilos (escolas) e organizações diversas (confederações, federações).

A escola difundida por Gichin Funakoshi “o Shotokan Ortodoxo” segue os princípios do Budô, considerado a essência, a estrutura e o alicerce de uma arte marcial e tem suas raízes mais remotas ligadas a artes marciais originárias na Índia, algumas posteriormente chegaram a China, onde se desenvolveram duas escolas, “Chuan-Fa” e “Nan-Pei-Chun”, sendo que destas chegaram à ilha de Okinawa, no Japão, e foram mescladas às lutas nativas, formando duas grandes escolas, “Shuri-Te” e “Naha-Te” .

Com relação às organizações relacionadas ao estilo Shotokan, ocorreram diversas ramificações, culminando no surgimento de múltiplas entidades regendo o mesmo estilo, infelizmente provocando e produzindo interpretações e atuações variadas com relação ao original.
O Karatê-Dô carrega consigo fortes traços da tradição oriental, comumente chamados e identificados como “filosofia”, termo relacionado aos aspectos da sabedoria, cultura e conduta existentes nas artes marciais conforme a cultura na visão ocidental.
Segundo Chaui (1994), “filosofia” difere da “sabedoria de vida ou modo de viver”, pois a filosofia deve ser entendida como análise, reflexão e busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas e indagações.

Em outras palavras, “filosofia” é um modo de pensar e exprimir os pensamentos, que surgiu especificamente com os gregos e que, por razões históricas e políticas, tornou-se, depois, o modo de pensar e exprimir predominante da chamada cultura ocidental, embora tenha a filosofia dívidas inestimáveis com a sabedoria dos orientais, em particular pelas viagens que colocaram os gregos em contato com os conhecimentos produzidos por aqueles. Por outro lado, sabedoria de vida ou modo de viver tem relação com contemplação do mundo e dos seres humanos para nos conduzir a uma vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, e é nesse sentido que se fala em “filosofia” no budismo, por exemplo.

Segundo Sensei Sasaki, o Karatê-Dô implica em experiência real de vida, é um tesouro, não de ‘ter’ mas para ‘ser’.
Educando e se Educando com o Budô através do Karatê:
Percebe-se assim os diversos valores que estão colocados na sua prática educativa, tais como a não fragmentação corpo – mente - mundo, a persistência, a determinação, a humildade, a sinceridade e o respeito ao outro, valores que são apreendidos e ensinados no “Caminho’ trilhado pelo Sensei ( professor) , que educa e se educa, na busca de uma compreensão mais profunda, amadurecida, do Karatê-Dô.
Sensei Sasaki reforça a idéia de aprendizado pessoal contínuo, persistente e não desligado da vida:
“eu continuo me aprimorando nesse sentido (...) continuo buscando através do Karatê esse tesouro escondido. E esse tesouro escondido, para achar tem que se esforçar (...). E esforçar corretamente é um caminho árduo (...). Fazer de qualquer jeito qualquer um faz (...), mas esforçar corretamente... ".

Sensei Inoki, comenta que “queria ficar forte, depois com o passar do tempo, treinando e recebendo orientação dos professores, comecei a entender que Karatê não é nada de ‘um contra outro’ é...‘contra mim mesmo’”.
Sensei Kazuo destaca que iniciou o Karatê como “uma forma de aprender alguma coisa relativa a defesa pessoal e, com o passar dos anos, foi se transformando numa descoberta, numa (...) possibilidade de auto-conhecimento”.

Sensei Sasaki relata: “ treinava Karatê como um instrumento para fortalecer meu espírito e encarar esse mundo de incertezas. Lapidar meu corpo, meu espírito (...). Enfim, eu treinei Karatê como instrumento para me fortalecer fisicamente e sempre na cultura japonesa, arte marcial além de ficar forte, te dá luz, iluminação, te dá clareza, é como o ‘caminho de Dô’. Seria tipo monge (...). Mas é monge através do Karatê (...) Aí comecei a mudar meu comportamento... no final, eu vou terminar como atleta ??? (...) Não!!! Eu vou seguir “Caminho” de ‘ser mestre’ e não simplesmente atleta detonador... lutador simplesmente,... eu vou trilhar o “Caminho” de mestre.”

Conclusão:
Valores como dignidade, honra, trabalho, pacifismo, formação do caráter, persistência e humildade se fazem presentes nas falas dos Senseis, os quais mantém as raízes da cultura oriental, ou seja, o Karatê como sabedoria ou modo de viver, em que o “Dô” (Caminho) se dá nas experiências cotidianas, para além do dojo, ou seja, não fragmenta a vida em si mesma da atividade.

No entanto, de acordo com Marta (2004), apesar de na atualidade muitas pessoas aderirem à prática de uma arte marcial pelo interesse na cultura oriental, outros interesses vinculam-se a tal procura, entre elas, a prática pela prática, o convívio social, entre outras, o que pode, no ocidente em geral, e mais especificamente no Brasil, conforme sua apropriação e desenvolvimento, até mesmo contrariar as raízes originais.

Nos depoimentos dos Senseis pudemos perceber que para eles, o Karatê se acha realmente nas coisas concretas da vida diária e daí decorre alguma dificuldade destes em explicarem o Karatê através das palavras.

O Zen, o Budismo e o Karatê possuem raiz de “ pensamento/sabedoria oriental “, ao contrário da filosofia ocidental vinculada a uma visão dicotômica (o corpo e a mente separados no “Ser” e ainda “este” do mundo).
No entanto, os citados modos de sabedoria oriental (inclusive anteriores a filosofia grega) têm sido colocados em segundo plano em nossa sociedade, particularmente por força da dominação instrumental-técnica do ocidente, desenvolvida principalmente com o impulso da Revolução Industrial (ocorrida a partir da segunda metade do século XVIII) e do Capitalismo.

Para Suzuki (2003) “o Zen se afasta muito mais de nós quando tentamos explicá-lo com papel e tinta, prendendo-o numa armadilha verbal e lógica” (p.67). O Zen está além do dualismo lógico-ilógico, acima da barreira verbal que tem sua validade puramente intelectual.

Conforme caracteriza Allan Watts (citado por SUZUKI, 2003), “o Zen nunca explica, somente dá sugestões...
Tentar explicá-lo é como tentar captar o vento numa caixa. No momento em que se fecha a tampa ele deixa de ser vento e se transforma em ar estagnado" (p.34).

Essas similaridades atribuídas entre o Zen e o Karatê não são feitas por acaso, pois o Karatê, assim como muitas artes marciais originadas no Extremo Oriente como o “Judô tradicional”, o Aikidô, o Kendô, dentre outras, ao remeterem-se ao Budô são entendidas desta mesma forma, e em suas origens históricas, por estarem associadas a um povo e a uma arte.

Assim, poderíamos dizer que o Zen e o Tao “influenciaram” o que hoje chamamos de Budô, porém, segundo Sasaki (1996) este possui características e objetivos próprios distintos do Zen.

Neste sentido Gichin Funakoshi, "o difusor do Karatê", declara: “ Pode-se treinar por muito, muito tempo, se porém, apenas mexer as mãos e os pés e saltar para cima e para baixo como uma marionete, você nunca chegará à essência; você fracassará em captar a quintessência do Karatê-Dô ” (p.113-114).

Enquanto manifestação do Budô, o Karatê parte do princípio de que a experiência individual é fator essencial na busca de sua compreensão, “a experiência individual é tudo no "Zen". Não há idéias inteligíveis para aqueles que não tem alicerces na experiência” (SUZUKI, 2003, p.54).
Essa prática no Karatê se faz NÃO no sentido de “saber fazer” para “saber ensinar”, muito discutido pelos profissionais em educação física (especialmente no processo de regulamentação da profissão), MAS SIM, como experiência calcada no dia-a-dia para se poder “ Sentir /

Perceber / Apreender ” o Karatê enquanto meio para se atingir o Budô.Logo, esta arte marcial oriental, nos termos da filosofia ocidental se aproxima antes da fenomenologia existencial (primado da percepção) do que do racionalismo cartesiano (primado da razão), pois:
“ o sistema da experiência não está desdobrado diante de mim como se eu fosse um deus, ele é vivido por mim de um certo ponto de vista, não sou seu espectador, sou parte dele, e é minha inerência a um ponto de vista que torna possível ao mesmo tempo a finitude de minha percepção e sua abertura ao mundo total enquanto horizonte de toda percepção ” (MERLEAU-PONTY, 1996, p.408).

Também foi possível notar nas falas dos Senseis que no dia-a-dia dos treinos eles começaram a perceber uma outra dimensão do Karatê. Embora tenham partido da idéia de um sistema de “defesa pessoal/luta” atingiram a idéia de “Caminho”, em outras palavras, como manifestação de algo mais amplo, como Budô.

Não se deve afirmar “ ser o Zen uma filosofia” na acepção comum do termo. O Zen não é decididamente um sistema fundado na lógica e na análise. É algo antípoda da lógica e do modo dualístico de pensar (...), não há, no Zen, livros sagrados ou assertivas dogmáticas, nem qualquer fórmula simbólica através da qual se obtenha um acesso a sua significação (...). Esta é a razão por que é difícil captar o Zen” (SUZUKI, 2003, p.58-59).

Em outras palavras, se formos atribuir ao Zen, assim como ao Karatê, os termos “filosofia” ou “religião”, os quais são fundamentados na racionalidade ocidental, estaríamos cometendo um equívoco, pois os primeiros ( Zen / Karatê ) , partem de princípios diferentes destes ( filosofia / religião ).

Afirma Suzuki (2003) que “a verdade e o poder do Zen consistem na sua simplicidade e caráter prático” (p.106). Em outras palavras o Zen, assim como o Karatê, se fundamenta “na experiência (...) e não através de abstrações” (p.106), pois “a menos que brote de ti mesmo, nenhum conhecimento é realmente teu. É somente uma plumagem emprestada” (p.117).

Sôhô (2000), ao argumentar sobre a prática do Zen, diz: “pode-se explicar a água, mas nem por isso a boca ficará molhada. Podem se fazer longas dissertações sobre a natureza do fogo, mas a boca não se aquecerá. (...) O alimento pode ser definido em poucas palavras, mas isso não basta para aliviar a fome” (p.33).

Portanto, o Karatê-Do ( Budô ), como sabedoria de vida ou modo de viver embora possua características e similaridades a filosofia, apresentada por Chaui (1994), enquanto análise, questionamento, indagação, reflexão sobre o conhecimento produzido e sobre o mundo, não possui seu alicerce na racionalidade ocidental, ao contrário encontra-se centrado na sabedoria oriental, no qual se privilegia a compreensão e contemplação do mundo através da experiência pessoal cotidiana.

REFERÊNCIAS
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SUZUKI, Daisetz T. Introduç