sábado, 8 de março de 2025

Do livro de O-Sensei’Funakoshi, (Karatê-Dō - Meu modo de vida). Parte I

Um relato de Genshin Hironishi’Sensei, (Presidente do Karatê-Dō Shoto-kai do Japão)

“...A origem do Karatê-Dō permanece impenetravelmente oculta pelas névoas da lenda, mas pelo menos conhecemos este fato: ele se enraizou e é amplamente praticado em toda a Ásia, entre povos que professam credos tão distintos como o budismo, o islamismo, o hinduísmo, o bramanismo e o taoísmo. 

No transcurso da história humana, artes de autodefesa específicas atraíram seus próprios seguidores em várias regiões da Ásia, mas existe uma semelhança subjacente básica entre todas elas. Por esta razão, de um modo ou de outro, o Karatê-Dō se relaciona com as outras artes de autodefesa orientais, embora (penso poder afirmar) seja ele, atualmente, a mais praticada de todas.

O inter-relacionamento se evidencia de imediato quando comparamos o motivo por trás da filosofia moderna com o da filosofia tradicional. A primeira tem suas raízes lançadas na matemática; a última, no movimento físico e na técnica. Os conceitos e ideias, as línguas e os modos de pensar orientais foram modelados, até certo ponto, por sua conexão intima com as habilidades físicas. Mesmo naquelas situações em que as palavras, e as ideias, passaram por mudanças de sentido inevitáveis no decorrer da história humana, descobrimos que suas raízes permanecem solidamente encravadas em técnicas físicas.

Há um ditado budista que, como muitas outras máximas do budismo, é manifestamente autocontraditório, mas, para o karateka, confere um significado especial à sua prática técnica. Traduzido, o ditado reza, ‘Movimento é não-movimento, não-movimento é movimento. Esta é uma tese que, mesmo no Japão contemporâneo, é aceita pelos educadores e, devido à sua familiaridade, a máxima pode ser até mesmo abreviada e utilizada adjetivalmente em nossa língua. 

Um japonês que busque ativamente a auto iluminação dirá que está “treinando sua barriga” (hara wo neru). Embora a expressão possa ter implicações amplas, sua origem se encontra na necessidade óbvia de enrijecer os músculos do estômago, um pré-requisito para a prática do Karatê-Dō, que é, afinal de contas, uma técnica de combate. Levando os músculos do estômago a um estado de perfeição, o karateka é capaz de controlar não somente os movimentos de suas mãos e pés, mas também sua respiração.

O Karatê-Dō deve ser quase tão antigo quanto o homem, que desde seus primeiros dias se viu obrigado a enfrentar, desarmado, as forças hostis da natureza, animais selvagens e inimigos entre seus semelhantes humanos. Ele logo aprendeu, criatura insignificante que é, que em seu relacionamento com as forças naturais a acomodação era mais sensata que a luta. 

Entretanto, onde havia um equilíbrio maior, nas hostilidades inevitáveis com os seus semelhantes, ele foi obrigado a desenvolver técnicas que lhe permitissem defender a si mesmo e, esperançosamente, derrotar o inimigo. Para que isso acontecesse, aprendeu que tinha de ter um corpo saudável e forte. Assim, as técnicas que começou a desenvolver — as técnicas que por fim foram incorporadas ao Karatê-Dō são uma feroz arte de combate, mas são também elementos da absolutamente importante arte da autodefesa.

No Japão, o termo sumô aparece na antologia poética mais antiga do pais, o Man‘yõshú. O sumô daquele tempo (século oitavo) integrava não somente as técnicas que encontramos no sumô atual, mas também as do judô e do Karatê-Dō; este último teve um desenvolvimento maior devido ao incentivo do budismo, visto que os monges o utilizavam como um meio de percorrer o caminho rumo à auto iluminação. Nos séculos sétimo e oitavo, budistas japoneses viajaram para as cortes de Sui e T’ang, onde aprenderam a versão chinesa da arte, trazendo para o Japão alguns de seus aperfeiçoamentos. 

Durante muitos anos, aqui no Japão, o Karatê-Dō continuou confinado nos largos muros dos templos, de modo particular dos do budismo zen; aparentemente, não era praticado por outras pessoas até que os samurais começaram a treinar no recinto dos templos e assim ficaram sabendo da existência da arte. Como o conhecemos atualmente, o Karatê-Dō foi aperfeiçoado, nos últimos cinquenta anos, por Gichin Funakoshi’O-Sensei.”...

Fim da primeira parte.